A Adultização Digital e o Marco Regulatório: Análise Jurídica dos Desafios na Proteção da Infância no Ambiente Virtual
Introdução
O fenômeno da adultização de crianças e adolescentes em plataformas digitais, recentemente catalisado pelas denúncias do influenciador Felca em agosto de 2025, representa um desafio jurídico complexo que expõe lacunas significativas no ordenamento jurídico brasileiro. A aceleração da tramitação do Projeto de Lei nº 2.628/2022 e projetos correlatos evidencia a urgência legislativa para estabelecer marcos regulatórios efetivos na proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no ambiente digital.
I. Fundamentos Constitucionais e Legais da Proteção à Infância
1.1. Previsão Constitucional
O artigo 227 da Constituição Federal estabelece o princípio da proteção integral, determinando que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à dignidade e colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A adultização digital configura flagrante violação ao referido dispositivo constitucional, na medida em que submete menores de idade a exploração de sua imagem e exposição inadequada, comprometendo seu desenvolvimento psicossocial saudável.
1.2. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
O ECA, em seus artigos 17 e 18, garante o direito ao respeito à integridade física, psíquica e moral de crianças e adolescentes. O artigo 232 tipifica como crime “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”, estabelecendo pena de detenção de seis meses a dois anos.
A exploração digital de menores para fins de monetização de conteúdo pode subsundir-se ao tipo penal mencionado, especialmente quando envolve exposição sexualizada ou inadequada para a faixa etária.
II. Análise do Marco Regulatório Vigente e Lacunas Normativas
2.1. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)
A Lei nº 13.709/2018 estabelece, em seu artigo 14, regime especial de proteção aos dados pessoais de crianças e adolescentes. O tratamento de dados de menores deve atender ao melhor interesse da criança, com consentimento específico e destacado dos pais ou responsável legal.
Contudo, a LGPD apresenta limitações na fiscalização efetiva de plataformas digitais que monetizam conteúdo envolvendo menores, especialmente quando há consentimento parental inadequado ou motivado por interesses econômicos.
2.2. Marco Civil da Internet
A Lei nº 12.965/2014 estabelece direitos e deveres para o uso da internet, mas carece de disposições específicas sobre proteção de menores em plataformas de compartilhamento de conteúdo. Suas previsões genéricas mostram-se insuficientes diante da complexidade da exploração digital infantil.
III. O Projeto de Lei nº 2.628/2022 e Propostas Legislativas
3.1. Análise do PL 2.628/2022
O projeto, que tramita em regime de urgência após as recentes mobilizações sociais, propõe alterações significativas no marco regulatório das plataformas digitais. Entre suas principais disposições, destacam-se:
- Responsabilização das plataformas por conteúdo envolvendo menores de idade
- Mecanismos de verificação etária mais rigorosos
- Limitações na monetização de conteúdo produzido por ou com participação de menores
- Sanções administrativas e criminais para violações
3.2. Projetos Estaduais e Iniciativas Conexas
Estados como o Ceará já apresentaram projetos de lei específicos contra a adultização, demonstrando o movimento federativo em direção à regulamentação. A criação de CPIs para investigar influenciadores representa instrumento de controle parlamentar relevante para a construção de um diagnóstico legislativo mais preciso.
IV. Tipificação Penal e Responsabilização Civil
4.1. Crimes contra a Dignidade Sexual
A adultização digital pode configurar crime de favorecimento da prostituição ou exploração sexual (artigos 228 e 244-A do Código Penal), especialmente quando envolve sexualização de menores para fins comerciais. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a proteção ampla da dignidade sexual de crianças e adolescentes.
4.2. Responsabilidade Civil
Os responsáveis legais, plataformas digitais e produtores de conteúdo podem ser civilmente responsabilizados pelos danos causados à formação psicológica de menores. A aplicação da teoria do risco e da responsabilidade objetiva das plataformas, conforme precedentes do STJ, fortalece as possibilidades de reparação.
4.3. Exploração do Trabalho Infantil
A utilização sistemática de menores para produção de conteúdo remunerado pode caracterizar trabalho infantil irregular, vedado pelo artigo 7º, XXXIII da Constituição Federal e pela Consolidação das Leis do Trabalho.
V. Direito Comparado e Experiências Internacionais
5.1. União Europeia – Digital Services Act
O Digital Services Act estabelece obrigações específicas para plataformas online na proteção de menores, incluindo sistemas de avaliação de risco, medidas de mitigação e transparência algorítmica. O modelo europeu pode servir de paradigma para a regulamentação brasileira.
5.2. Estados Unidos – COPPA
O Children’s Online Privacy Protection Act oferece proteções robustas para dados de menores de 13 anos, incluindo restrições à coleta de informações pessoais e requisitos de consentimento parental verificável.
VI. Desafios Jurisprudenciais e Hermenêuticos
6.1. Conflito entre Liberdade de Expressão e Proteção da Infância
Os tribunais brasileiros enfrentarão o desafio de equilibrar os direitos fundamentais à liberdade de expressão e comunicação com a proteção integral da criança e do adolescente. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre direitos fundamentais em conflito oferece baliza hermenêutica relevante.
6.2. Aplicação Territorial e Jurisdição
Plataformas digitais globais apresentam desafios jurisdicionais complexos. A definição de competência e aplicabilidade da lei brasileira a empresas estrangeiras requer construção jurisprudencial sólida e eventual cooperação internacional.
VII. Instrumentos Processuais de Tutela
7.1. Ação Civil Pública
O Ministério Público dispõe de legitimidade para propor ações civis públicas visando à proteção coletiva de crianças e adolescentes explorados digitalmente, podendo requerer obrigações de fazer, não fazer e reparação por danos coletivos.
7.2. Medidas Cautelares
A urgência na proteção de menores expostos justifica a concessão de medidas cautelares, incluindo remoção de conteúdo, bloqueio de monetização e suspensão de contas em plataformas digitais.
7.3. Tutela de Evidência
A flagrante violação dos direitos da criança e do adolescente autoriza a concessão de tutela de evidência, dispensando a demonstração de periculum in mora quando evidente o direito pleiteado.
VIII. Propostas de Aperfeiçoamento Legislativo
8.1. Criação de Agência Reguladora Especializada
A complexidade técnica das plataformas digitais justifica a criação de órgão regulador especializado, com competência para elaborar normas técnicas, fiscalizar cumprimento e aplicar sanções administrativas.
8.2. Estabelecimento de Códigos de Conduta
A autorregulação regulada, mediante códigos de conduta homologados por autoridade competente, pode oferecer flexibilidade necessária para acompanhar a evolução tecnológica mantendo efetividade na proteção.
8.3. Mecanismos de Notificação e Remoção
Sistemas de notificação extrajudicial para remoção expedita de conteúdo exploratório, com procedimentos transparentes e possibilidade de contraditório, equilibram eficiência e devido processo legal.
IX. Aspectos Procedimentais e Probatórios
9.1. Preservação de Evidências Digitais
A volatilidade do conteúdo digital exige mecanismos ágeis de preservação de evidências. A regulamentação de procedimentos técnicos para coleta e preservação de provas digitais é fundamental para efetividade dos processos.
9.2. Perícia Técnica Especializada
A complexidade técnica das plataformas demanda formação de peritos especializados em tecnologia digital e algoritmos, essencial para fundamentação adequada das decisões judiciais.
X. Considerações Finais
A adultização digital de crianças e adolescentes representa fenômeno que exige resposta jurídica coordenada e multifacetada. A mobilização social recente criou janela de oportunidade legislativa que deve ser aproveitada para construção de marco regulatório robusto e efetivo.
O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de fundamentos constitucionais e legais sólidos para proteção da infância, mas carece de instrumentos específicos para os desafios do ambiente digital. A aprovação do PL 2.628/2022 e projetos correlatos, acompanhada de regulamentação administrativa adequada, pode estabelecer paradigma importante na proteção dos direitos fundamentais no ciberespaço.
A efetividade da proteção jurídica dependerá da coordenação entre Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como da colaboração de plataformas digitais e organizações da sociedade civil. O direito deve evoluir para acompanhar os desafios tecnológicos sem perder de vista seu compromisso fundamental com a dignidade humana e a proteção integral da criança e do adolescente.
A construção de jurisprudência sólida sobre o tema será crucial para balizar a aplicação das normas e oferecer segurança jurídica aos diversos atores envolvidos. O momento atual representa oportunidade histórica para estabelecer no Brasil modelo de proteção da infância digital que possa servir de referência internacional.
Referências Normativas:
-
- Constituição Federal de 1988, art. 227
- Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)
- Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados)
- Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet)
- Código Penal, arts. 228, 232, 244-A
- PL nº 2.628/2022